quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Trecho

A casa estava mais silenciosa que o de costume. Ambientes vazios. Segui pelos corredores, me espalhei pelas salas, bailei pelos recintos. Notei a ausência de alguns personagens que compunham aqueles cômodos. Busquei os barulhos típicos do lugar, mas tudo o que ouvi foi o canto amargurado da cozinheira ao fogão. A cantoria era emocionada e desafinada, mas era bela em sua simplicidade.

A mulher que choramingava estrofes na cozinha sentia-se livre em meio à solidão daquela casa. O desamparo lhe fez produzir um som espontâneo, secreto, liberto. A senhora estava em um encontro com ela mesma, e somente os móveis abandonados e eu a testemunhávamos. Meu peito encheu-se de alguma coisa boa ao ouvir o canto alto de uma mulher geralmente tão calada. Tive vontade de respirar fundo e puxar vida para dentro de mim. Desejei ceder à correnteza e me sentir solta como ela.

Onde estavam todos? Não me importei com explicações, apenas consumi o isolamento para meu pleno prazer, como fez a senhora na cozinha. Eu aprendi a canonizar o silêncio.

Esquecida entre as paredes, eu percebi a beleza de partes da casa que eu não freqüentava.

Afastei-me seguindo para o jardim. Sol forte, roseiras balançando levemente, o dia tinha um perfume diferente. A grama estava banhada por uma luminosidade intensa, a água espelhando na fonte era convidativa, reconheci no ar o raríssimo aroma de paz. Um sopro bagunçou meus cachos. O frescor corria por dentro do meu vestido, me varrendo delicadamente. O dia era poesia.

Sob o sol acompanhei os passos solitários do meu professor pela calçada. Olhar alheio ao mundo, perdido no chão, ele parecia meditativo, distante em si. Que reflexões ele fazia? Eu nunca consegui fugir do ciúme que tinha dos seus pensamentos, eles me causavam tantas dúvidas, fertilizavam a minha imaginação, eles me relembravam a existência de um paralelo inacessível, me relembravam a noiva. Mas o delicioso formigamento que eu sentia com o seu retorno dissipava toda a minha insegurança. A felicidade explodia em mim a cada chegada sua. Te-lo de volta era renovar as minhas esperanças, era bonança depois de dias de tormenta. Era a minha vitória parcial. Vendo-o atrás do portão percebi que vivo fisicamente e mentalmente para esse homem; canalizo todas as minhas forças e esforços para sessenta minutos com ele. Uma hora entre tantas outras a apenas imaginar nossos desatinos. Eu pensava: Por ele eu viveria essa eterna espera, um eterno drama, um eterno seja lá o que for nós dois.

Ele atravessou o jardim mantendo a malícia dentro de seus olhos escuros quase fechados pela luz. Próximo de mim abriu um sorriso que eu traduzia com facilidade. Um jeito particular de sorrir que me antecipava sensações, que reafirmava as nossas intenções para os momentos seguintes.

O calor nos aquentava a pele. Eu o aguardava sobre um degrau da escada da entrada. Seu olhar era linear ao meu. Descobri que seus olhos ao sol tinham cor de avelã e um brilho especial que revelava saliência. Um olhar que enxergava claramente todos os meus apelos.


Joguei seu chapéu em uma cadeira, entramos na sala de música. Permaneci de pé assistindo meu amante abrir cuidadosamente o piano. Sem me perceber ele cumpria o ritual de preparação para a aula, organizava as partituras, ouvia o som de algumas notas. Suas lindas mãos, sem pressa tocavam o piano, dedilhando sem compromisso. Seus dedos cheios de destreza sobre as teclas resultavam em mim uma onda lasciva carregada de fantasias.

- A casa está vazia. Disse baixinho, fui faceira. Joguei-o contra a minha correnteza. Fiz-lhe um convite, um chamado para nossas loucuras, um ultimato para que agarrasse logo o meu corpo e me apertasse contra seu peito.

Menti. Eu o fiz sem medos. Pronunciei uma frase sem cálculos, uma doce mentira de criança. Foi uma atitude impulsiva e na minha percepção, inofensiva. Menti por que julguei justo. Menti porque eu merecia ser amada por inteiro, livre, desatada. Sem temores, sem suspeitas, sem cautelas.

A casa não estava vazia, mas a pessoa na cozinha não nos encontraria, na verdade, nem mesmo cogitei o contrário. Criar aquela ilusão ampliaria nossa intimidade, nos faria conquistar o chão, as paredes, moveis e tudo o mais que quiséssemos. Com tão pequena mentira, eu presentearia meu amante com um gozo desimpedido. Externaria seus instintos e fantasias, lhe permitiria conduzir e ser conduzido, usufruir de cada centímetro dos nossos corpos. Agi deliberadamente seguindo meu incontrolável desejo de satisfazer e ser satisfeita por aquele homem.

Eu teria mensurado os riscos se em mim houvesse espaço para a sanidade.

Qualquer um teria feito o mesmo.

- Não tem ninguém aqui? - ele perguntou surpreso. Seu rosto, virado para mim, me mostrava que seus pensamentos estavam em perfeita sintonia com os meus.

Meu corpo exalava sensualidade, sem pudor expelia mil vontades em mil formas diferentes. Meu professor já conhecia cada um dos meus sinais, sua respiração aos poucos se alterava. Meus seios rijos aguardavam impacientes por pele, mãos e boca. E enfim minhas fantasias seriam reais, seus dedos estariam em mim, e eu obedientemente os receberia.

- Onde estão todos? De pé, frente a mim, ele olhava para meus seios nus por de baixo do vestido. Meu decote era violentamente rasgado por seu olhar.

- Não faço idéia de onde possam ter ido!

Não tive tempo para dizer mais nenhuma palavra. Meu amante me tomou pela cintura tirando meus pés do chão. Beijou-me como se beija pela primeira ou última vez. Senti sua sede e sua fome, enquanto nossos corpos mantinham um delicioso atrito.

A sala foi preenchida por sussurros e meu corpo por frêmitos.

Um a um, os botões do vestido foram abertos como parte de uma cerimônia. Um ato deleitável que encheu de cor e calor seus olhos brilhantes. Ele descobria meu corpo nu pela primeira vez. Eu não era mais parte e sim um inteiro.

O vestido caiu aos meus pés. Meu professor sentou-se ao banco do piano. Eu era uma estátua viva exposta para a adoração do público. Os olhos do meu amante, meu público mais estimado, cultuavam minha nudez sem recato, um corpo aberto sem a menor timidez. Imóvel, ele apreciava minha totalidade.

Era um momento reservado apenas para uma silenciosa admiração. Palavras ou toques certamente corromperiam o encanto daquela cena. Meu querido homem corria pela minha pele, media as minhas formas, mergulhava em meus pêlos, com um olhar que me conflagrava e me embaralhava os sentidos. Seu olhar parecia se deparar com algo sagrado; um corpo imaculado a seu alcance, rendido, ofertado para a sua saciedade.

- Vire-se de costas. Ouvi uma voz afetada pelo desejo ardente; um timbre tremido, incerto, de quem busca controlar a respiração, de quem sente a pulsação do sexo, e sente dor antes do prazer. Ouvi uma ordem que implorava para ser rapidamente obedecida.

Virei-me. Observei o restante da sala inabitada, todos os cantos e objetos a assistir nosso rito. Eu estava desorientada, um pouco embriagada talvez, mal reconheci aquele lugar. Após instantes a encarar os quadros eu retornei a mim; Vi as grandes janelas abertas, as portas de vidros que davam para o jardim e para o corredor; luz invadindo por todos os lados; a sala de música era um teatro a céu aberto, era acessível, um esconderijo desprotegido. Faríamos amor em um aquário. A Sobriedade tentou me atingir, mas as labaredas já tinham alcançado o teto, já lambiam cortinas, madeira, tapetes, já tinham me roubado de mim. Línguas de fogo já me consumiam lentamente a cada minuto a menos que tínhamos.

Senti suas pupilas examinarem a minha maciez até cortarem fundo a carne. Voltei-me novamente para o seu olhar.

Uma corrente moveu-se a por meu corpo. Sua respiração era ofegante, não mais que a minha. As roupas lhe incomodavam, blusa, sapatos foram jogados pelo chão. Seu rosto crispado elucidava a ânsia sentida, a vontade de estar dentro de mim.


(...)

5 comentários:

  1. Gostei do texto. Consegui entrar no cenário e já imaginei o professor.... hummm.. deve ser uma perdição.. rsrsrs..
    Amei! Quero saber de final dessa história.
    Parabéns!

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  2. Muito bonito e bem escrito parabéns.

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  3. Bem descritivo, consigo imaginar todo o cenário.
    Muito bom!

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  4. belas palavras...mas uma dica... eu tb escrevo textos no meu blog...e tente dividir as postagens..pq quando e grande a maioria das pessoas não lerem...experiencia propria...e expero otros contos...ate..

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