quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Doença viva

Leve isso tudo com você.

Por favor, deixe fora do meu alcance. Coloque na mais alta das prateleiras, bem distante das pontas dos meus dedos.

Por favor, me esvazie, me deixe seca e morta por dentro. Corte-me para que eu sangre. Traia-me para que eu ame pela última vez. Por favor me abandone para que eu chore.

Cure-me dessa dependência.

Injetei em mim essa felicidade vinculada ao seu sorriso. Intoxiquei-me, dilatei veias pelo prazer doentio de precisar...

Clarice





Que inveja eu sinto da Clarice.

A garota mais bonita da escola, a moça mais cortejada do baile. Que ódio! Todos querem seus olhos de gato, e aquele sotaque engraçado que ela nunca perdeu.

Conheci Clarice quando tinha dez anos - isso só aconteceu porque eu perdi o ano. Já era maio, e como eu podia imaginar, não tinha feito amigos na nova turma. Fiquei calada por semanas até que uma menina de jeito manhoso se aproximou. Eu mal a conhecia e já a odiava. Clarice e suas ideias. Como pode uma menina saber tanta palavra?

Antes dela eu não tinha sentimentos ruins. Mas essa irritante perfeição que todos chamam de Clarinha mudou tudo por fora e por dentro. Pensei ter virado um menino. Meu rosto esquentou, mãos inquietas, formiguinhas dançando na barriga...

Clarice, a matrioska, tantas elas dentro dela, e mundos... Clarice riu.

A menina que inventava palavras arrastou sua cadeira para perto e não saiu mais.

Quando eu levantava para ir ao banheiro, ela pegava o meu caderno e escrevia um poema em uma folha qualquer. Rimava as minhas palavras com as suas.

Eu guardei os cadernos.

Lembro sua voz viril ecoando; as sextas Clarice lia suas redações para a classe. Como essa garota gosta de furtar nossa atenção... Dona Mariana dizia que ela era um exemplo de aluna, eu me contorcia de raiva no fundo da sala.

Senti vergonha dos meus sentimentos, rezei para que isso passasse, acordei cedo e fui à missa; virei a santinha no copo d’água...

Ah se eu conseguisse não ama - lá... Naquele ano pedi isso de Natal. Papai Noel entrou no meu quarto de madrugada e gelou meu coração. Mas no réveillon Clarice apareceu, me desejou um bom ano e beijou meus lábios.

Para agradá-la, roubei um trecho de uma música francesa e a escrevi em um cartão:
- Clarice, com as suas linhas eu vejo a vida em cor de rosa. Seus olhos se esticaram formando uma meia – lua acompanhada por um movimento das maças do rosto. Estava satisfeita.

E foi assim. Fomos felizes até o ano em que fiz 16.

Era um dia cinza, daqueles que nem os pássaros admiram – Virginia e seu hálito frio chegaram à cidade.

Clarice também cegou aquela mulher.

Virginia, a bruxa nariguda, passou a segui-la, sussurrando coisas em seus ouvidos. Clarice não quis me contar.

Inventei intrigas, mentiras cruéis para afastá-las, mas não deu certo.

Hoje eu sinto falta da sua pele e do cheiro de fumo entranhado em suas mãos.

Às vezes eu a esqueço, mas quando menos espero esbarro com ela pelas esquinas. E ela me leva tão fácil, nem precisa uma frase inteira...

Li por ai que Clarice casou e ganhou o mundo.
Eu...
Eu ainda moro na Tijuca.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Aos 50

No último sábado, durante um jantar, um amigo me perguntou se a vida começa aos cinquenta. Eu, que tenho cinquenta anos a apenas duas semanas, ainda não havia pensado sobre o início da minha vida. Naquela mesma noite, deitada, protegida entre meus lençóis, forcei uma reflexão sobre esse tema...

Aos 20, não era vida, era carreira. Era a ambição de uma jovem advogada sonhando construir impérios. Longas noites de trabalho em meio a pilhas de papel. Desejar todo o dinheiro do mundo. Conquistas, resultados, reconhecimento. Aos 20, não era vida, era carreira.

Aos 30, não era vida, eram filhos. Era todo amor, toda atenção para eles. Vivi meus filhos e suas histórias, o menino que caiu na escola, a menina que quer ir a uma festa. Em meus pensamentos, eu fui eles em tempo integral. Aos 30, não era vida eram os meus dois amores.

Aos 40, não era vida, era angústia. Pensamentos circulares que me afogavam. Estou velha, quem vai me querer assim? Rugas, menopausa, calores. Estou velha. Tratamentos e cremes para evitar o inevitável. Aos 40, não era vida era angústia.

Agora eu tenho 50 e vou me aposentar no mês que vem. Meus filhos casaram e tudo o que era para cair, já caiu. As rugas sentaram nos cantinhos do meu rosto e os calores ainda existem, mas não me assustam mais. Hoje uso cremes apenas para perfumar a pele. Diria que os dias são mais fáceis agora. Eu não espero mais nada de ninguém, nem de mim mesma. Aos 50, vida é vida.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Escrever

Meu ideal seria escrever para construir castelos com torres bem altas, que pudessem alcançar qualquer coisa. Escrever para ir bem longe...

Para ser quem eu não fui e quem eu nunca serei. Escrever para ter todas as vidas, todos os nomes, todos os amores...

Escrever ”pro dia nascer feliz, essa é a vida que eu quis o mundo inteiro acordar e a gente dormir”.

Ou mais simples do que isso; escrever para repartir.
Apresentar-te as pessoas que se escondem na minha mente.
Escrever para materializar minha loucura

E seu eu pudesse dar um final feliz a corações tristonhos, eu seria feliz.